O Assunto
Mário Quintana
E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.
O auto Retrato
Mário Quíntana
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!
O café é tão grave, tão exclusivista, tão definitivo
Mário Quintana
que não admite acompanhamento sólido. Mas eu o driblo,
saboreando, junto com ele, o cheiro das torradas-na-manteiga
que alguém pediu na mesa próxima.
O Eterno Espanto
Mário Quintana
Que haverá com a lua que sempre que a gente a olha é com o súbito espanto da primeira vez?
O LUAR
Mário Quintana
O luar,
é a luz do Sol que está sonhando
O tempo não pára!
A saudade é que faz as coisas pararem no tempo...
...os verdadeiros versos não são para embalar,
mas para abalar...
A grande tristeza dos rios é não poderem levar a tua imagem...
O Mapa
Mário Quintana
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
O MATA-BORRÃO
Mário Quintana
O mata-borrão absorve tudo e no fim da vida acaba confundindo as coisas por que passou... O mata borrão parece gente!
O MORTO
Mário Quintana
Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!
O Poema
Mário Quintana
O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.
O POETA
Mário Quintana
Venho do fundo das Eras
Quando o mundo mal nascia...
Sou tão antigo e tão novo
Como a luz de cada dia!
Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Mário Quintana
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!
Os poemas são pássaros que chegam
Mário Quintana
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
PARA SEMPRE É MUITO TEMPO . O TEMPO NÃO PÁRA !
Mário Quintana
SÓ A SAUDADE É QUE FAZ AS COISAS PARAREM NO TEMPO .
PEQUENO ESCLARECIMENTO
Mário Quintana
Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio rm que escrevo e em que tu me lês.
Poema
Mário Quintana
Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...
Poema Transitório
Mário Quintana
(...) é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é urgente!
... no entanto
eu gostava mesmo era de partir...
e - até hoje - quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.
POEMINHA DO CONTRA
Mário Quintana
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!
Para Pensar
Mario Quintana
Existe apenas uma idade para sermos felizes, apenas uma epoca da vida de cada pessoa em que é possível sonhar, fazer planos e ter energia suficiente para os realizar apesar de todas as dificuldades e todos os obstáculos. Uma só idade para nos encantarmos com a vida para vivermos apaixonadamente e aproveitarmos tudo com toda a intensidade, sem medo nem culpa de sentir prazer. Fase dourada em que podemos criar e recriar a vida à nossa propria imagem e semelhança, vestirmo-nos de todas as cores, experimentar todos os sabores e entregarmo-nos a todos os amores sem preconceitos nem pudor. Tempo de entusiasmo e coragem em que toda a disposição de tentar algo de novo e de novo quantas vezes for preciso. Essa idade tão fugaz na nossa vida chama-se presente e tem a duração do instante que passa..
POEMINHA SENTIMENTAL
Mario Quintana
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
Por acaso, surpreendo-me no espelho:
mario quintana
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."
Por favor não me analise,
Mario Quintana
Não fique procurando cada ponto fraco meu.
Se ninguém resiste a uma análise profunda.
Quanto mais eu, ciumento, exigente, inseguro, carente,
Todo cheio de marcas que a vida deixou.
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor
Poema da gare de Astapovo
Mário Quintana
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
PRESENÇA
Mário Quintana
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
Qualquer ideia que te agrade,
Mário Quintana
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez que vestir a verdade
Que dentro em ti se achava inteiramente nua...
Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto
Mário Quintana
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova...