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Wandecy Medeiros:

Átomo de hipopótamo

Não quero isentar-me de nenhuma responsabilidade e nem justificar meus acessos de fúria doméstica num gene doente, mas sempre que eu fui animal irascível fui bem compreendido depois. Nos momentos mais razoáveis da minha vida fui sempre questionado ou ignorado. Minha notável humanidade sempre foi desprezada em detrimento de qualquer defeito menor. Tudo que em mim cheira a anjo é sufocado pelo átomo de hipopótamo que certamente carrego.
Todas às vezes em que eu não explodi, implodi. Deve haver bons pedaços de mim em muito lugares e se alguém entender que tem um motivo para me assassinar, certamente se lembrará da minha frase já tão mastigada: “se eu morrer assassinado, quero dizer, de antemão, que o criminoso já está perdoado”. Eu não estou perdoando o criminoso no sentido dele se livrar da justiça dos homens e usar minha frase como defesa no tribunal do júri. Perdôo como um fator humano, valorando o chavão “aceitar aquilo que não se pode mudar”. Isso é mais um revide do que uma nobreza de alma.
Morrer nos dias de hoje é lucro, não prejuízo, diz a minha ironia. Ironia por ironia, pois jamais analisei a possibilidade de deixar de beber café depois do almoço. Tudo o que eu não sou depende de mim para continuar não sendo. Eu quis ser inteligente e comprei livros. Toda a minha filosofia barata comprei em caros enlatados. Quando externei o que pensei com a minha própria cabeça disseram-me que alguém já tinha desenvolvido o mesmo assunto com mais profundidade e capacidade; de tal forma que toda temática já estava acabada, comprimida, definida e guardada num disquete. Toquei fogo nos livros e me chamaram de ignorante, mas ninguém sentiu que a traça que corroía os livros estava me corroendo também. Ensinaram-me a etiqueta certa de como arrotar e hoje eu dou arrotos elegantes, aprendi também para que serve o carburador do carro e sou culto o suficiente para falar profundamente de qualquer assunto durante 30 segundos.




Wandecy Medeiros:

Eu estou apenas sendo irônico, Zezinho!

Testemunhei orgulho naquele que alimenta o mendigo. Bendito orgulho esse, conheço outro orgulho incapaz de tal gesto. É provável que na nossa melhor ação exista mesmo uma besta querendo aflorar. Louvada seja essa besta, conheço outras piores.
Eu não vasculhei o Apocalipse buscando encontrar sinais para condenar nenhum desenho animado ou história em quadrinhos. Nunca encontrei mistérios e sacrilégios em nenhum código de barra. Sempre que penso na minha pretensa superioridade em relação a Zezinho lembro do meu nariz entupido de algodão. Não querer humilhar ninguém é parte do meu mais profundo orgulho. Não desejo que ninguém morra, contanto que morra depois de mim – eu estou apenas sendo irônico, Zezinho!


Wandecy Medeiros:


E os vermes tinham razão...

Se um dia me tornarem um apreciado escritor e o meu túmulo receber a visita de acadêmicos e outros seres insossos, deixo registrado aqui, para essa gente escafandrista, minha total consciência do meu tempo e lugar. A cada livro eu melhoro em relação ao livro anterior. Não nasci lapidado. Comecei como lagarta e aos poucos torno-me borboleta. Um dia não conseguirei mais me superar porque a idade e o físico talvez me impeçam, mas aí alguém já terá rotulado algum pecado meu como pecado maior. Se os meus ossos forem testemunhas de algo maior que o meu corpo e mente testemunharam, então é nesses ossos que deposito toda minha esperança e propósito.


Wandecy Medeiros:

Um pé na virtude, outro pé no pecado


Andei do lado escuro das luas para ter o prazer de negar a supremacia da luz. Os melhores espíritos estavam no limite, com um pé na virtude e outro pé no pecado. O Sol é tão claro que não nos permite ver-mos outras belezas. Os espelhos confundem por mostrar demais. O que é claro é enfadonho; o que é escuro é misterioso e fascina. À noite posso ver a lua com mais poesia e menos ciência e toda beleza que eu extraio das estrelas necessita o seu quinhão de trevas.
Não quero parecer-me um poetóide contemplativo soltando loas ao “sorriso das estrelas e a beleza prateada da lua”. Vôo mais além. Busco a beleza plástica e por vezes já andei corrigindo o cenário. Eu vejo defeito no pedacinho de Universo que me é permitido enxergar. Vez por outra transfiro estrelas de um lugar para outro, imagino a lua com outras cores e corrijo o excesso de nuvens em algum lugar da pintura. Longe de mim dizer que Deus é um mau criador (embora eu tenha restrições em relação ao gambá e ao sapo), mas não é justo Ele nos apresentar o mesmo belo e enfadonho espetáculo milhões de vezes, enquanto Ele pode viajar para alfa do centauro e contemplar outras paragens. Já me cansei de ouvir o trovão depois de contemplar o relâmpago. O Universo e suas leis repetem a mesma ladainha de sempre, os mesmos compassos, a mesma cantilena, e o refrão só atesta a sábia observação do profeta: “Debaixo do Sol não há nada novo.”


Wandecy Medeiros:
Ora, Borges

Minha certeza é a morte, minha dúvida é a vida. Não sei se existe algo depois, mas sei que existe algo antes. Esse algo antes é “tomar sorvete, andar descalço, desalinhar os cabelos”, ora Borges. Viver não é coisa de budista ou cristão. Viver é coisa de moleque peralta. Sem quebrar vidraças, mas também sem perder tempo limpando-as todos os dias; sem atirar pedras nos transeuntes, só ameaçando. Pode-se conhecer o valor de um sapiens sapiens pelo número de pedras que ele ajunta e pode-se conhecer a grandeza de alguém pelo tipo de pedra que ele atira.
Ora, crianças não gostam de tiranos. Crianças não atirariam pedras nem numa Maria, quanto mais numa Madalena; nos doutores da lei, talvez. Viver é coisa de moleque. O adulto que não brinca morreu com o último suspiro da infância. Queremos mais Chaplins e nenhum Torquemada; mais duendes e menos lobisomens; mais “As Caçadas de Pedrinho” e nenhum “Mein Kampf”“; mais cirandinha e nenhum Helter Skelter; finalmente, mais palhaços e menos policiais.
O mundo só terá paz quando as crianças forem eleitas.





Wandecy Medeiros:
Do ponto de vista do Dragão


Olá, meus leitores. Volto a escrever para vocês três porque preciso dessa catarse. Preciso me libertar desse corpo de sangue e de desejos, dessa mente de álcool e filosofia e desse espírito de sonhos improváveis e realidades maçantes.
Não preciso do elogio de vocês, pois sei elogiar a mim mesmo: na cama consigo vencer os meus moinhos de vento e conquistar a minha doce dulcinéia. Dou-me ao delírio de pedir e conceder autógrafos a mim mesmo.
Crio minhas realidades a partir das fantasias de tudo o que não sou eu. Nos meus sonhos não me afogo, bebo o rio; não fujo do medo, engulo-o; não temo os castigos de Deus, inspiro-os. Para cada Deus que me mostram eu crio um diabo*, e o inverso, e até o inverso do inverso, acontece também.
Muitas vezes eu contemplei a montanha e isso era muito bom, mas só descobri o melhor quando decidi escalá-la. Deixei de infamar os bêbados: eles só desceram porque tentaram subir e ficaram em tal estado porque quando a fraqueza se ocupa com alguma coisa acaba fortalecendo o grilhão que a acorrenta. A bebida tem algo de sábio: só afoga o asno, mesmo que o ébrio seja um Poe.
O dragão é a realidade e defende a donzela enclausurada que sonha com um libertador terrível: homem, bípede, pensante, carnívoro e, como se não bastasse, príncipe. Ninguém escreveu contos medievais do ponto de vista do dragão. Invertemos os monstros. Não é correto um bicho de sete cabeças não aprisionar uma donzela. Ela escolhe sempre o príncipe que mata seu provedor porque compara a aparência externa de ambos os pretendentes. A donzela, ao escolher o príncipe, fortalece a sua própria fraqueza, e continua povoando esse mundo de príncipes que, depois de conquistar a amada, tornam-se os mais cruéis dragões.
*Antigamente eu só escrevia a palavra diabo com “D” maiúsculo, mas a imensidão de demônios que se vangloriavam disso ao me encontrar nas ruas levou-me a mudar de idéia.


Wandecy Medeiros:
Marketing

Tentei capturar alguma sutileza artística no rótulo de um pote de azeitonas e não pude deixar de perceber que quem o criou, projetou tão bem as azeitonas do desenho que se parecem mais apetitosas do que aquelas que posteriormente degustei. Só não destaquei aquele rótulo pelo medo que senti de tornar-me um colecionador.
Tudo virou arte e a embalagem nova da rapadura acaba de ganhar o prêmio de design do ano. Um engenhoso proprietário de supermercado já pode até cobrar 10% a mais ao vender os seus produtos para pagar o “imposto sobre embalagem artística”. O governo já deve estar de olho na beleza dos rótulos. Todos aqueles produtos supérfluos que enfeitam as prateleiras do supermercado proporcionam ao crítico de arte moderna grande satisfação. Um supermercado é uma estupenda galeria de arte. Ali você encontra arte impressionista, expressionista, cubista, realista, abstracionista e “nadista”. De tudo que um supermercado vende o que me parece de mais utilidade é o papel higiênico – ele sim é uma das mais sábias invenções da humanidade.
A mulher, que é o bicho que mais se enfeita também é o bicho que mais enfeita. Você encontra fêmeas carnudas no sabonete, na cerveja, no leite em pó, na caixa de biscoitos e no papel do chiclete. É comum se ouvir dizer que a mulher movimenta a economia, que ela compra tudo, gasta o que o marido tem com o necessário e o que ela ganha com o dispensável (ou será o contrário?). Não se coloca marmanjos em rótulos: salvo aquelas exceções em que pingüins com rostos femininos aparecem fazendo poses que envergonha a nós dez – os últimos machistas.
Os designers têm trabalhado tão bem os rótulos e fachadas que eu estou comprando sabonete somente pela beleza da embalagem e esqueci até que utilidade um sabonete pode ter. Outro dia me flagrei comendo um cartaz que anunciava a nova novidade em chocolate.
E por falar em papel higiênico a indústria tem trabalhado um modelo novo: é perfumado, suave e tão especial e avançado que você sente vontade de defecar só em vê-lo na prateleira.


Wandecy Medeiros:

Sensuais, lindas e a “França é a capital de Paris”

Inteligência é uma coisa masculina, embora exista no mundo 10 mulheres inteligentes e três geniais. Desconfio dos homens que elogiam a inteligência das mulheres – é mentira porque os homens sempre têm outras coisas a admirar na mulher que não seja a inteligência. São uns patifes: querem o hardware e elogiam o software. As mulheres não observam isso porque são mulheres...
Esse atual tipo de macho chamado mulher emancipada é o início de uma igualdade total que vem por aí: nós, os machos, e as mulheres emancipadas uniremos nossas forças para escravizar a mulher que não se “varonizou”, que não se “hominizou”.
Não posso dar ouvidos a uma mulher bonita, é um disparate para ela: só os olhos interessam. Com as mulheres o segredo é ser selvagem: delicadeza é frescura de mulher.

Wandecy Medeiros