Falar é completamente fácil,
Carlos Drummond de Andrade
quando se têm palavras em mente
que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes
o que realmente queremos dizer,
o quanto queremos dizer,
antes que a pessoa se vá.
Felismente existe o álcool na vida.
Carlos Drummond de Andrade
Uns tomar éter, outros, cocaína.
Eu tomo alegria!
Minha ternura dentuca é dissimulada.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Estou farto do lirismo comedido.
Como deve ser bom gostar de uma feia!
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manha.
... os corpos se entendem, mas as almas nao.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
Há campeões de tudo, inclusive de perda de campeonatos.
Carlos Drummond de Andrade
Há certo gosto em pensar sozinho. É acto individual, como nascer e morrer.
Carlos Drummond de Andrade
Há homens e mulheres que fazem do casamento uma oportunidade de adultério.
Carlos Drummond de Andrade
há uma hora em que os dares fecham e as virtudes caem
Carlos Drummond de Andrade
Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Carlos Drummond de Andrade
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)
Carlos Drummond de Andrade
JOSÉ
Carlos Drummond de Andrade
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Lutar com palavras
Carlos Drummond de Andrade
é a tuta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
[...]
Palavra,palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Lira do amor romântico
Carlos Drummond de Andrade
Ou a eterna repetição
Atirei um limão n’água
e fiquei vendo na margem.
Os peixinhos responderam:
Quem tem amor tem coragem.
Atirei um limão n’água
e caiu enviesado.
Ouvi um peixe dizer:
Melhor é o beijo roubado.
Atirei um limão n’água,
como faço todo ano.
Senti que os peixes diziam:
Todo amor vive de engano.
Atirei um limão n’água,
como um vidro de perfume.
Em coro os peixes disseram:
Joga fora teu ciúme.
Atirei um limão n’água
mas perdi a direção.
Os peixes, rindo, notaram:
Quanto dói uma paixão!
Atirei um limão n’água,
ele afundou um barquinho.
Não se espantaram os peixes:
faltava-me o teu carinho.
Atirei um limão n’água,
o rio logo amargou.
Os peixinhos repetiram:
É dor de quem muito amou.
Atirei um limão n’água,
o rio ficou vermelho
e cada peixinho viu
meu coração num espelho.
Atirei um limão n’água
mas depois me arrependi.
Cada peixinho assustado
me lembra o que já sofri.
Atirei um limão n’água,
antes não tivesse feito.
Os peixinhos me acusaram
de amar com falta de jeito.
Atirei um limão n’água,
fez-se logo um burburinho.
Nenhum peixe me avisou
da pedra no meu caminho.
Atirei um limão n’água,
de tão baixo ele boiou.
Comenta o peixe mais velho:
Infeliz quem não amou.
Atirei um limão n’água,
antes atirasse a vida.
Iria viver com os peixes
a minh’alma dolorida.
Atirei um limão n’água,
pedindo à água que o arraste.
Até os peixes choraram
porque tu me abandonaste.
Atirei um limão n’água.
Foi tamanho o rebuliço
que os peixinhos protestaram:
Se é amor, deixa disso.
Atirei um limão n’água,
não fez o menor ruído.
Se os peixes nada disseram,
tu me terás esquecido?
Atirei um limão n’água,
caiu certeiro: zás-trás.
Bem me avisou um peixinho:
Fui passado pra trás.
Atirei um limão n’água,
de clara ficou escura.
Até os peixes já sabem:
você não ama: tortura.
Atirei um limão n’água
e caí n’água também,
pois os peixes me avisaram,
que lá estava meu bem.
Atirei um limão n’água,
foi levado na corrente.
Senti que os peixes diziam:
Hás de amar eternamente.
Mimosa boca errante
Carlos Drummond de Andrade
Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delícias
que fruto e boca se permitem, dádiva.
Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereces
a seu volume e jato apaixonados
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?
Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a líquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual se fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.
Já sei a eternidade: é puro orgasmo.
Minha poesia é cheia de imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos. Não vou apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública.
Carlos Drummond de Andrade
NÃO DEIXE O AMOR PASSAR
Carlos Drummond de Andrade
Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento,houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente: O Amor.
Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR.
Não é fácil ter paciência diante dos que têm excesso de paciência.
Carlos Drummond de Andrade
Não há vivos, há os que morreram e os que esperam a vez.
Carlos Drummond de Andrade
Não quero ser o último a comer-te
Carlos Drummond de Andrade
Não quero ser o último a comer-te.
Se em tempo não ousei, agora é tarde.
Nem sopra a flama antiga nem beber-te
aplacaria sede que não arde
em minha boca seca de querer-te,
de desejar-te tanto e sem alarde,
fome que não sofria padecer-te
assim pasto de tantos, e eu covarde
a esperar que limpasses toda a gala
que por teu corpo e alma ainda resvala,
e chegasses, intata, renascida,
para travar comigo a luta extrema
que fizesse de toda a nossa vida
um chamejante, universal poema.
Carlos Drummond de Andrade
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Carlos Drummond de Andrade
Também não cantarei o meu futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles,considero a enorme realidade.
O presente é tão grande,não nos afastemos.
Não nos afastemos muito,vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher,de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer,a paisagem vista da janela,não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicidas,não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria,o tempo presente,os homens presentes,a vida presente.
Necessitamos sempre de ambicionar alguma coisa que, alcançada, não nos torna sem ambição.
Carlos Drummond de Andrade
Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar.
Carlos Drummond de Andrade
No corpo feminino, esse retiro
Carlos Drummond de Andrade
No corpo feminino, esse retiro
— a doce bunda — é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.
Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro
a mão em concha — a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,
me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.
No mármore de tua bunda
Carlos Drummond de Andrade
No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.
Tu a levaste contigo.
No meio do caminho
Carlos Drummond de Andrade
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Carlos Drummond de Andrade
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra ...
No pequeno museu sentimental
Carlos Drummond de Andrade
No pequeno museu sentimental
os fios de cabelo religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.
Apalpo, acaricio a flora negra,
a negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.
Os movimentos vivos no pretérito
enroscam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.
Vou beijando a memória desses beijos.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
Carlos Drummond de Andrade
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.