OUTRAS ÁGUAS
José Fanha
(Sobre uma gravura de David Almeida)
Amarás o pássaro
cantando.
Amarás a lua
respirando
sobre o corpo das mulheres
e das cidades.
Amarás a curva delicada
no adeus da folha do salgueiro
a caminho do Outono.
Não hesites.
Ama em cada instante
a música que nasce e nunca voltará.
Este é o teu destino:
branco sobre branco.
Água deslizando
a caminho
de outras águas.
ABRIL
José Fanha
Havia uma lua de prata e sangue
em cada mão.
Era Abril.
Havia um vento
que empurrava o nosso olhar
e um momento de água clara a escorrer
pelo rosto de mães cansadas.
Era Abril
que descia aos tropeções
as ladeiras da cidade.
Abril
tingindo de perfume
os hospitais
e colando um verso branco em cada farda.
Era Abril
o mês imprescindível que trazia
um sonho de bagos de romã
e o ar
a saber a framboesas.
Abril
um mês de flores concretas
colocadas na espoleta do desejo
flores pesadas de seiva e cânticos azuis
um mês de flores
um dia
um mar de flores
um mês.
Havia barcos a voltar
de parte nenhuma
em Abril
e homens que escavavam a terra
em busca da vertical.
O nosso lar passou a ser a rua
nesse mês sem sono.
Era Abril
e eu soltei o sumo
da palavras
e vi
dicionários a voar
nesse mês
e mulheres que se despiam abraçando
a pele das oliveiras.
Era Abril
que veio
que ardeu
e que partiu.
Abril
que deixou sementes prateadas
germinando longamente
no olhar dos meninos por haver.
José Fanha, in "Tempo Azul"